Na rua Dr. Campos, número 6, em Cerquilho, ficava nossa casa,
grande e modesta, de paredes altas e janelas e portas abertas para a rua e o
quintal. Cresci com a ventura dos quintais e a alegria das ruas. Crianças
espertas, éramos divertidos camaleões entre as ramagens das árvores, a poeira e
a lama das ruas e a fumaça dos trens.
Das janelas para os fundos víamos crescer e amadurecer frutos
de delícia incomparável, a ouvir os sons bizarros dos animais e bichos que
viviam em nossos pomares e se misturavam às vozes da meninada.
As janelas para a rua abriam-nos para o mundo. E o mundo
vastíssimo de chão batido era circo, teatro, quadra esportiva, escola. Jogos de
peteca, amarelinhas, queimadas, fogueiras, rodas de ciranda, malabarismos e mágicas
faziam a nossa festa. E não faltavam contorcionismos de todo tipo.
Podíamos contar os veículos nas poucas ruas e isto também se
tornava brincadeira. Eram o táxi do Tio
Tidinho, os ônibus do Tio Tico Rosa da Silva, carros, caminhonetes e caminhões FNM e
da Ford que contávamos nos dedos. Alguns carros de Tietê e cidades vizinhas
aumentavam a frota e a nossa contagem se avantajava.
Havia um carro que chamava minha atenção desde tenra idade
por ser diferente e porque suas idas e vindas tinham propósitos especiais. Era
o Ford inglês, modelo Prefect, ano 1950 de cor bege do médico Dr. Vinício
Gagliardi. Se quiser, veja um carro igualzinho ao dele no canal https://youtu.be/ikcaNHxGIh8.
Único médico da cidade, Dr. Vinício, esse notável homem de sorriso jovial e simpático, atendia no Posto
de Saúde e em casas de ricos e pobres com a mesma atenção. Seus cuidados
médicos transcendiam a medicina da época e curou muita gente com graves
enfermidades. Salvou-me de um choque anafilático e a uma de minhas irmãs com
sério problema pulmonar. Anjo salvador, não abandonava a casa do paciente
enquanto não sentisse melhoras e muitas foram as noites, chovesse ou não, em que ele saiu com seu Prefect em estradas de
terra, cafundós de sítios e fazendas com a responsabilidade de assistir a partos
difíceis e a doentes em fase terminal. Levava a cura e trazia a vida em quartos
escuros, mal iluminados com fracas luzes de velas e lamparinas. Quando a morte
era inevitável, dava para notar sua enorme frustração.
Não à toa, essa é uma das lembranças mais marcantes nas ruas
da minha infância, o Ford Prefect de cor bege indo e vindo pela cidade e estradas
rurais e o seu dinâmico condutor, médico sem fronteiras, sempre de plantão,
Pronto Atendimento daqueles dias em que não havia hospital em nossa pequenina
Cerquilho. Somente em casos muito graves é que o Dr. Vinício encaminhava seus
pacientes à Santa Casa de Tietê ou a cidades maiores.
Essa incrível história de um médico, seus serviços
humanitários e seu Ford Prefect ano 1950
que já publiquei certa vez e volto a ela, pois a personagem em foco merece
nossas homenagens inúmeras vezes, é, sem dúvida, a história de uma grande alma.